A partir da Constituição Federal de 1988, a ideologia da família patriarcal começou a ser desconstruída. Edificada em uma família monogâmica, parental, centralizada na figura paterna e patrimonial, a família das gerações anteriores não possuía preocupações, via de regra, com o afeto e a felicidade das pessoas que formavam seu principal núcleo, uma vez que os interesses de cunho econômico gravitavam em torno daquelas instancias de núcleos familiares construídos com suporte na aquisição de patrimônio (casamentos arranjados).
Por quase 30 (trinta) anos, os modelos de entidades familiares lembrados pela Carta Magna não abarcaram a diversidade familiar presente na contemporânea sociedade brasileira. Ainda que na prática houvesse a variedade de grupos familiares, não havia um instrumento consolidado para resguardar e fazer cumprir as mencionadas relações afetivas.
Com novas estruturas da família brasileira, passou-se a dar mais importância para as relações e laços afetivos, não sendo suficiente a descendência genética ou civil, tornando-se fundamental a integração entre pais e filhos por meio do sublime sentimento da afeição.
Assim adveio o princípio da afetividade, o qual atribui valor jurídico nas relações regidas pelo amor, nas sábias palavras da Ministra Nancy Andrighi, no REsp 1.026.981 (REsp 1.026.981 –STJ), por meio do qual sustenta que o Direito não só pode, mas deve cooperar com as relações afetivas, demonstrando, a partir da análise da decisão prolatada, que a área jurídica não pode restar alheia a esse fundamental aspecto, haja vista que a afetividade é um dos princípios basilares do Direito de Família Brasileiro, conforme se extrai do julgado:
“A quebra de paradigmas do Direito da Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes. Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face das minorias, cabendo-lhe exercitas raciocínios de ponderação e apaziguamento de possíveis espíritos em conflito. A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideias de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento, igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso” (STJ, REsp 1.026.981/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010, Dje 20.02.2010).
Desse modo, tendo em vista que a paternidade e a maternidade possuem um significado mais profundo do que a verdade biológica, tem-se que o zelo, amor e dedicação ao filho pode ser construído pelo livre-desejo de atuar, diante da interação entre pai, mãe e filho do coração, sentimentos cultivados durante a convivência entre estes, como é o caso de padrasto ou madrasta com os filhos de seus companheiros.
Assim, os Tribunais por meio das jurisprudências reiteradamente vêm prestigiando a prevalência da chamada posse do estado de filho. Não deixa de ser genitor aquele ascendente com temperamento frio, menos afetuoso, mas, em contrapartida, tem-se que não se pode considerar genitor o ascendente biológico da mera concepção, que sequer acompanhou o desenvolvimento do filho.
Nesse ínterim, independentemente, da relação que a criança possui com o seu pai biológico. Ou seja, a criança pode ter um pai ou mãe biológica participativa e ainda assim reconhecer em outro homem/mulher também um pai/mãe.
Nesse contexto, a fim de enraizar e estimular a manutenção dos laços afetivos, a Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 63/2017, alterado pelo atual Provimento nº 83/2019, estabelecendo regras para o procedimento do registro extrajudicial, ou seja, sem a necessidade da intervenção judicial, sobre a filiação socioafetiva, estipulando na ocasião, dentre outras matérias, que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva.
Assim, a partir do nascimento da relação de socioafetividade, nutrido por um padrasto ou madrasta, um tio, um avô, um padrinho, enfim, alguém que desempenhe efetivamente a função de pai ou de mãe, com o vínculo reconhecido pela sociedade, poderá haver a nomeação de tal, fazendo se valer do então efetivo registro na certidão de nascimento do filho o reconhecimento do vínculo paterna/materna existente.